
Crítica - Em "Anora", Sean Baker encontra o caos e o drama em um conto de fadas subversivo
4 min.
22/01/2025
Guilherme Salomão
O cineasta norte-americano Sean Baker sempre demonstrou um apreço por realidades alternativas de grandes cidades e centros urbanos. Em Anora, sua mais nova realização premiada com a Palma de Ouro no Festival de Cannes 2024, ele não faz diferente. Conceitualmente, o filme fica no meio do caminho entre Tangerine (2015) e Projeto Flórida (2017) nesse projeto de cinema, equilibrando o humor mais absurdo e, por vezes, escrachado do primeiro, com o drama mais sensível do segundo.
Na trama, acompanhamos a história de Anora (Mikey Madison), uma jovem prostituta que, em uma noite normal de trabalho, descobre uma oportunidade de mudar seu destino: ela acredita ter encontrado seu verdadeiro amor após se casar impulsivamente com o filho de um oligarca russo, Ivan (Mark Eidelshtein). Não demora muito para que a notícia se espalhe pela Rússia e, logo, seu conto de fadas é ameaçado quando os pais de Ivan entram em cena, desaprovando totalmente o casamento.
Em determinado instante do longa, Anora menciona que sempre se imaginou vivendo como uma princesa. Pode até parecer algo romantizado e “fofo” a partir do primeiro encontro e da dinâmica do casal. Mikey Madison é dona de uma performance de voz suave e de doçura no olhar. Já Mark Eidelshtein não é uma figura hipermasculinizada. De sotaque acentuado e aparência magra e esguia, o jovem é o impulsivo cômico em todos os sentidos.
Esse caminho de conto de fadas onde tudo é perfeito e ajustado, porém, não é necessariamente a escolha de Baker. Existe, de fato, o lado do escapismo da realidade por parte da protagonista - como no momento em Las Vegas onde a câmera enquadra o casal em um contra-plongée com as luzes e cores da cidade em destaque ao fundo, como se a dupla vivesse um típico romance adolescente dos mais idealizados e oníricos. Mesmo assim, ao invés da idealização literal, Baker opta por seguir pelos caminhos da comédia caótica, das cores vibrantes, da câmera na mão, do comportamento jovial inconsequente e da narrativa acelerada e repleta de situações absurdas já característicos de outras direções suas.
É assim, portanto, que a relação deles se desenvolve, até o momento em que a desconstrução do sonho da jovem acontece. O absurdo prevalece conforme Ivan é retratado como o “filho de papai e mamãe” — cuja atividade dos pais não é revelada com clareza para o espectador — e Anora se vê perdendo tudo o que acreditava estar construindo com ele.
Nesse momento, o texto pesa um bocado a mão no humor. As situações e falas cômicas não combinam tanto com o contexto, soando por vezes deslocadas, como se fosse difícil sentir empatia pela situação da personagem de Madison enquanto o texto de Baker insiste em fazer piada com tudo o que acontece com ela e com a situação como um todo. É um conflito constante entre essas duas ideias, que toma conta da projeção em sequências como a busca por Ivan — que, em meio a toda a crise da situação, subitamente desaparece e faz com que o restante dos personagens se dediquem a encontrá-lo a qualquer custo.
A saída de Baker para a história de Anora, porém, aposta no drama. Mais uma vez, nada é romantizado ou “correto”. Vemos o efeito real e o peso dessa história da jovem que foi enganada e que vê seu sonho se despedaçar. A partir desse momento, o personagem Igor (Yuriy Borisov), um dos “capangas” dos pais de Ivan, chama atenção em meio a tantos que só querem humilhar Anora — incluindo o próprio Ivan, que, em um dos momentos derradeiros da quebra da “fantasia”, deixa claro para Anora a necessidade do anulamento do casamento, já que o que eles viveram foi apenas a curtição e as propostas de um jovem inconsequente.
Igor, por sua vez, parece ter caído de paraquedas na situação e possui um olhar de ternura genuína por ela. Anora, aqui, acha isso incompreensível. Cresceu numa realidade masculina perversa onde era vista apenas como objeto. Entretanto, por trás dessa menina há uma jovem que precisa ser forte e encarar o mundo pelo que ele é, mas que, no fundo, ainda é tomada pelo peso de sua realidade e pela melancolia.
Nessa altura do longa, como dito, a conclusão é mais dramática. Não é um final ruim, mas parece se levar a sério depois de toda a intenção de provocar o riso incessante em seu espectador. O resultado, por conta disso, não é tão chocante ou equilibrado quanto "Tangerine" ou "Projeto Flórida', que seguem ou pelo caos o tempo inteiro ou pelo drama. Ainda assim, "Anora" é uma aventura que vale a pena ser vivida e descoberta.